É bom lembrar que em toda e qualquer cidade, além dos vivos sabidos em números de estatística, há também os mortos, os seus mortos, arquivados. Eles são sempre muitos, guardam seus hálitos em ventos e dentro de alcovas particulares. Os mortos têm sempre muita intimidade conosco, nós que somos novos habitantes de um lugar só deles. Por isso é preciso cuidado, atenção e afeto; afeto, mesmo quando tudo parece hostil.
Como poder amar uma cidade que não traz nossos traços, nem nossa memória, e boceja a toda hora em que passamos por ela? Como poder amar suas motocicletas barulhentas, seus carros de som desesperados, suas curvas em precipício?
Lembrei-me agora de uma cidade que conheci há muito tempo atrás: suas ruas eram praças largas, larguíssimas, e a impressão que tínhamos era que, ao andarmos por elas, as casas iam dando pra traz, cada vez mais, ficando cada vez mais longe, nos deixando num campo aberto.
Não há como negar: há cidades antipáticas, grosseiras, frígidas, feias. Também há cidades que nos trazem de volta a nós mesmos: palmeiras, casarios, muros, esquinas, heras, tudo diz coisas para nossa alma muda. Há cidades sedutoras, maternais, belas, introspectivas, vivas.
Gostaria de um dia, por exemplo, tomar chuva numa viela em Paris. Gosto muito de cidades, pois todas têm história escondida. Cada soleira abandonada de uma casa nos convida a entrar e a conhecer o invisível. Se deixarmos nosso sobretudo e chapéu na entrada, seremos convidados para uma festa em preto e branco, como nas fitas do cinema antigo.
Ah, as cidades! Gostaria de poder conhecer seus traumas mais íntimos; por que por exemplo nessa avenida há tantos atropelamentos, e naquela os gemidos lacerantes de um vento. E naquela outra uma indiferença palpitante. E nessa minha, esse asfalto grosso, concreto, condutor de carros velozes, sempre indo, sempre indo, sempre indo, incessantemente...
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