Um multidão superior a 35 mil pessoas ganhou as ruas na noite desta segunda-feira em homenagem às vítimas do incêndio na boate Kiss,
em Santa Maria.
Vestidos de branco e segurando cartazes, balões e
faixas negras de protesto, familiares e amigos saíram da Praça Saldanha
Marinho, no centro da cidade, pouco depois das 22h.
A mobilização
começou com orações e com o canto do hino do Rio Grande do Sul. Após, a
multidão percorreu, ora em silêncio, ora ao som melancólico de
violinos, o mesmo trajeto que os corpos fizeram após a tragédia,
passando pela Kiss e seguindo até o Centro Desportivo Municipal (CDM),
onde ocorreu o reconhecimento das vítimas e muitos velórios.
Por uma infelicidade
tremenda, fui ler os comentários de um site sobre o acontecido em Santa
Maria e dei com uma criatura funesta que falou coisas impublicáveis. Um
só. Um único demente entre tantos solidários, e pensei: precisa mais que
um para lamentarmos a falta de compaixão? Porque essa foi a palavra que
me invadiu desde as primeiras horas de um domingo ensolarado lá fora e
nublado aqui dentro: compaixão.
Qualquer pessoa que tenha um filho ou uma filha não tem como não se
colocar no lugar dos pais, dos avós, dos tios daquela garotada que saiu
no sábado à noite para se divertir e que foi vítima do destino —
poderíamos também chamar de descaso, insensatez, irresponsabilidade —,
mas é cedo para diagnósticos precisos. Destino é uma palavra mais
abrangente.
Tenho duas filhas que comumente saem à noite,
dançam, se divertem em lugares fechados, e eu não faço vistorias
prévias, não peço laudos, não investigo, simplesmente confio que elas
estarão em segurança. Quem pode garantir? Alguém deveria, mas o destino
não se responsabiliza. Nunca se responsabilizou.
Sei de dois
irmãos e de um casal de namorados que tinham relações com amigos meus e
que estão entre as vítimas. De íntimo, eu não conhecia ninguém. Isso me
afasta da tragédia? Nada nos afasta dessa tragédia, a não ser que não
tenhamos compaixão. Essa palavra não me sai da cabeça. Um mundo
individualista como o nosso precisa abraçar esse conceito, esse
sentimento: compaixão. Se colocar no lugar do outro. Dói, mas é
necessário.
Quem não tem filhos sofre. Quem tem se arrebenta.
Não é algo que se explique. Nenhum racionalismo conforta. É um soco que
nos tira o ar e nos faz lembrar o que tanto buscamos esquecer: que somos
todos vulneráveis diante da fragilidade da vida.
"Morri em Santa Maria hoje. Quem não morreu? Morri na Rua dos Andradas,
1925. Numa ladeira encrespada de fumaça. A fumaça nunca foi tão negra no
Rio Grande do Sul. Nunca uma nuvem foi tão nefasta. Nem as tempestades
mais mórbidas e elétricas desejam sua companhia. Seguirá sozinha,
avulsa, página arrancada de um mapa.
A fumaça corrompeu o céu para sempre. O azul é cinza, anoitecemos em 27
de janeiro de 2013. As chamas se acalmaram às 5h30, mas a morte nunca
mais será controlada. Morri porque tenho uma filha adolescente que
demora a voltar para casa.
Morri porque já entrei em uma boate
pensando como sairia dali em caso de incêndio. Morri porque prefiro
ficar perto do palco para ouvir melhor a banda. Morri porque já confundi
a porta de banheiro com a de emergência. Morri porque jamais o fogo
pede desculpas quando passa.
Morri porque já fui de algum jeito
todos que morreram. Morri sufocado de tanta morte; como acordar de
novo? O prédio não aterrissou da manhã, como um avião desgovernado na
pista. A saída era uma só e o medo vinha de todos os lados.
Os
adolescentes não vão acordar na hora do almoço. Não vão se lembrar de
nada. Ou entender como se distanciaram de repente do futuro. Mais de
duzentos e cinquenta jovens sem o último beijo da mãe, do pai, dos
irmãos.
Os telefones ainda tocam no peito das vítimas
estendidas no Ginásio Municipal. As famílias ainda procuram suas
crianças. As crianças universitárias estão eternamente no silencioso.
Ninguém tem coragem de atender e avisar o que aconteceu.
As palavras perderam o sentido."
(Fabrício Carpinejar)